por Juliana Segóvia
Falamos muito sobre o poder do discurso e daqueles que utilizam deste para exercer algum tipo de dominação. As palavras, carregadas de significados e paradigmas históricos refletem nos nossos dizeres cotidianos as práticas sociais de gerações. A questão é se sabemos até onde reproduzimos determinados discursos, ou se pelo menos reconhecemos o poder das palavras ditas, escritas, pensadas.
Quando temos a noção do poder dessas construções simbólicas _ utilizadas para nos fazer entendidos, comunicarmos e entendermos o outro_ passamos a analisar tudo que chega até nós de uma forma “desconfiada”, a buscar as fontes, a ter criticidade com embasamento de leituras do mundo.
E o poder daqueles que dominam a linguagem e utilizam-se desta para manifestar revolta contra tudo isso que nos consome e que nos explora?
Em dezembro de 2009, adquiri um livro do poeta Carlos Drummond de Andrade chamado
A Rosa do Povo, publicado em 1945. Li e reli alguns poemas, me identificando em determinadas idéias, em relação ao que vivia na época, como o poema
Consolo na praia. Tinha 24 anos.
No mesmo ano, assisti um documentário no qual o estudioso Morin dizia: _ Não há poesia na miséria! Concordei. Como poderiam aqueles que dedicam a vida a compreender a sociedade, como muitos literatos, escritores, se manterem no âmbito do escrever? Isso perdurou até o dia em que minha amiga Luiza Raquel, lendo
O Elefante marejou seus olhos após ler e disse: _ Não, não desisto! “Amanhã recomeço”. Não deixarei de acreditar que tudo pode mudar.
Luiza foi impactada pelas palavras de Drummond de uma forma que não haviam me impactado, capaz de fazê-la mais uma vez acreditar no ser humano, mais uma vez acreditar na idéia de transformação social. Meses a fio refleti do “por que” de não ter a mesma sensibilidade.
A tentativa humana de perpetuar e materializar o mundo em imagens, símbolos e sons existe na arte e seu sentido amplo; na música, nos livros, nas pinturas, na poesia. Manifestar o momento histórico e suas revoltas, eternizar as reivindicações de uma sociedade que nunca deixou de ser permeada pela correlação de forças; divulgar o que é belo, o que é ideal, o que é triste, o que é miséria, o que é esperança.
Não vivo na miséria. Ler, ler com sensibilidade e criticidade são práticas que devem ser diárias, e nós, essa demanda de estudantes que tem nas mãos a oportunidade de absorver os discursos que trabalham com a verdade, temos de tomar isso quase que como uma obrigação pessoal. Pessoas com realidades socioeconômicas parecidas e que acreditam ter nas mãos o instrumento de transformação: o acesso ao conhecimento e as práticas que derivam dele.
Viva a poesia! Viva as oportunidades iguais! Viva ao coletivo! Viva ao conhecimento! Viva as ações! VIVA AO DISCURSO EMBASADO E CRÍTICO!
Para celebrar àqueles que fizeram das palavras artifícios poderosos de mudança, e que em seus dons fomentam uma sociedade mais justa, coloco um poema de Carlos Drummond de Andrade, do livro
A Rosa do Povo, chamado
A flor e a náusea. O mínimo de sensibilidade permitirá compreender a intensidade que cada palavra carrega nesse desabafo esperançoso.
A FLOR E A NÁUSEA
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar o tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Obrigada Drummond!